A meu ver merecia o Oscar, mas nem a indicação, foi um vacilo grande demais.
"O Abutre": um vampiro e seu banco de sangue
“O Abutre” é um filme de vampiro, não desses filmes de vampiros joviais e românticos, daqueles antigos filmes de vampiros: demoníacos, sem alma, maldosos, charmosos, ameaçadores e que congelam o sangue do espectador. Ele tem tudo o que se precisa em um bom filme do gênero: fotografia noir, desenho de produção charmoso, um bom ator no papel principal, posicionamentos de câmera rebaixados e uso de luz difusa. Só falta uma coisa: um vampiro. Afinal, “O Abutre” não é um filme que apele para nenhum elemento sobrenatural.
A ideia do diretor estreante Dan Gilroy ( irmão do indicado ao Oscar Tony Gilroy) é exatamente importar a estrutura narrativa e as técnicas de direção do gênero “filmes de criatura” para uma trama realista, no caso, para a biografia fictícia de um psicopata que resolve empreender no mercado da imprensa marrom. Interpretado com um afinco surpreendente por Jake Gylenhall, que parece ter se inspirado nas atuações do falecido ator Klaus Kinsky (Nosferatu; Aguirre), esse psicopata é desenhado como um homem ausente de qualquer sentimento, dotado de um efervescente racionalismo amoral e antiético, de origem pobre e que busca entrar num mercado que o excita, o mercado da cinegrafia de tragédias.
Cuspindo frases retiradas de manuais de administração de empresas (o que denota a baixa educação do protagonista, além da sua incapacidade em exprimir qualquer noção emotiva que não seja plagiada), de mero ladrão de rua cresce aos poucos por meio de manipulação e atos criminosos. O ator consegue definir com perfeição as características emocionais de seu personagem: um homem incapaz de sentir coisa alguma, exceto sua excitação em obter o sucesso de seu empreendimento.
Enquanto isso a direção exibe seu vampirismo. A casa do protagonista é escura, mesmo estando o dia claro; a câmera se mantém sempre próxima ao corredor de entrada, como se tivesse medo de entrar no cômodo (outra técnica batida de filmes do gênero); o protagonista é constantemente filmado de costas, ou de baixo para cima; as roupas estão sempre um número acima, para ficarem folgadas e confirmarem a imagem esguia e fantasmagórica do ator; e, claro, os óculos escuros de opacidade extrema.
Com um roteiro tradicional em estrutura, que acerta em cheio no crescendo para atingir um clímax, mas inspirado em diálogos, com diversas conversas bem calculadas de manipulação, além de uma caracterização detalhista de perfis psicológicos, o cineasta ainda impõe um forte subtexto: o oportunismo de todo cinegrafista. E quando dizemos cinegrafista, pode ser tanto jornalístico quanto cinematográfico. Capturar imagens é beber o sangue da realidade, é manipulá-la. Um detalhe da personagem que corrobora essa leitura é a obsessão dele por enquadramentos. Quando, numa cena de depoimento policial, a oficial avisa ao protagonista que ele está sendo filmado, ele olha para a câmera e diz “Câmera superior, ângulo aberto”. Ora, enquadrar é manipular, é distorcer, é conformar a realidade as suas intenções. Por meio desse tipo de manobra, Dan Gilroy atesta: todo cinegrafista é um vampiro, disposto a se alimentar da manipulação do cotidiano.